Lisboa Minha Cidade

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Mirador de Santa Luzia

quinta-feira, outubro 05, 2006

SINFONIA EM BRANCO


Ainda havia algum tempo antes que ela chegasse.
A tarde abafada de verão descolava-se da estrada sob forma de poeira e se espreguiçava no ar. Tudo estava quieto, ou quase quieto, e mole, inchado de sono. Um homem de olhos muito abertos (e transparentes de tão claros, coisa que não era comum) fingia vigiar a estrada com seus pensamentos. Na verdade, os olhos mapeavam outros lugres, vagavam dentro dele, e catavam cacos de memória como uma criança que colhe conchinhas na areia da praia. Às vezes o presente se intrometia, se interpunha, e ele pensava vou usar terra em meu próprio trabalho. Mas então o mundo marrom e ressecado e empoeirado contraía-se novamente para ver passar um branco virginal, uma moça vestida de branco que evocava um quadro de Whisler.
Tomás lembrava-se dela. O amor. Onde estaria?
O amor era como a marca pálida deixada por um quadro removido após anos de vida sobre uma mesma parede. O amor produzira um vago intervalo em seu espírito, na transparência dos seus olhos, na pintura envelhecida da sua existência. Um dia, o amor gritara dentro dele, inflamara suas vísceras. Não mais, Mesmo a memória era incerta, fragmentada, pedaços do esqueleto de um monstro pré-histórico enterrados e conservados pelo acaso, impossível recompor um todo íntegro. Trinta anos depois. Duzentos milhões de anos depois.
Lisboa, Adriana in "Sinfonia em Branco", Editora Rocco.

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